Não sei exatamente quando o espelho passou a fazer parte da vida da humanidade, talvez em histórias como das bruxas dos contos de fadas, sei lá; mas no momento em que isto aconteceu, este simples objeto adquiriu proporções que ultrapassam a futilidade.
Lembra da lenda de Narciso?
Conta a lenda que Narciso era um jovem de singular beleza. No dia de seu
nascimento, um adivinho profetizou que ele teria vida longa desde que jamais
contemplasse a própria figura. Mas seu egoísmo provocou o castigo dos deuses.
Ao observar o reflexo de seu rosto nas águas de uma fonte, apaixonou-se pela
própria imagem e ficou a contemplá-la até consumir-se. Dizem que no lugar onde
ele morreu, nasceu uma flor, que ficou conhecida pelo seu nome: Narciso. Na
psicanálise, o termo narcisismo designa a condição mórbida do indivíduo que tem
interesse exagerado pelo próprio corpo.
Todos nós, num dado momento, tememos o espelho. Quando
jovens, nem tanto, porém, com o passar dos anos, começamos a evitá-lo e, ao
mesmo tempo, ainda que disfarçadamente, a sós, parecemos ter certa necessidade
de mirá-lo...
O tempo
passou, o mundo mudou, e aqui estamos nós, numa complexa relação com o tal
espelho. E esta complexidade não se restringe ao físico, à cultura do corpo e
suas exigências. Acho que inconscientemente, vivemos alguns conflitos também
com um suposto espelho que projeta o invisível de nossa intimidade, nossas
frustrações, medos, que nos coloca frente a frente com o irreversível do que
nos tornamos ao longo dos anos.
É complicado enxergar-se e reconhecer-se, sem de fato,
compreender-se e admirar-se.
Se projetamos nossa imagem e a definimos a partir das
relações com as pessoas e circunstâncias, estes (as pessoas e as
circunstâncias) supostamente tornam-se nossos espelhos, e nós, espelho dos
outros. Pense bem: Nesses relacionamentos espelhados, nos mais variados
sentidos, há que se considerar as possíveis distorções, exageros,
supervalorizações. Qualquer imagem sofre variações quando passa pelo outro,
pelas coisas, e provavelmente comprometerão a reprodução do nosso “eu”. A visão mais confiável seria, então, aquela que não se
projeta, mas que se revela na viagem ao centro de si mesmo.
Nossa vida não foi um acidente, por isso, somos mais do que
o que nos mostra qualquer espelho.
É bom ter consciência dos caminhos por onde já passamos,
onde estamos e até onde pretendemos ir; sentir prazer e ver sentido em cada uma
dessas etapas. Saber que o centro do universo não mora no nosso “umbigo” e que
a vida e seus reflexos não se limitam a nós.
Se conseguirmos considerar assim,
nossa imagem passa a ser refletida com inteireza, numa constante
possibilidade de ver-se, rever-se, reverenciar-se e aperfeiçoar-se, em si, nos
outros e em Deus.
Olho para o meu espelho, sei quem sou e reconheço minhas
limitações. Não me menosprezo, nem me ensoberbeço, apenas descanso na paz de
amar a mim mesma e, assim, ser capaz de amar de verdade o outro.